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A Botada (Texto redigido pelo professor Juvenal)

Escrito por Viraldo B. Ribeiro
Sáb, 16 de Maio de 2009 17:06

Naquele setembro, como nos anteriores, rarearam as chuvas no recôncavo. O massapé, ressequido, agora permitia acesso aos canaviais estendidos como imenso lençóis verdes, ondulados ao sopro dos ventos no cimo dos caules.

Pejadas na safra passada as Usinas estiveram, nos meses de inverno, sem fogo e sem fumaça em reparos gerais. A primavera, naquele setembro, tornara propício o inicio da moagem; e os canaviais flechados indicavam que a hora da “botada” era chegada.

Cada ano, como se fora o primeiro, o evento era uma festança. Adultos e crianças, pais e filhos, homens e mulheres, empregados e patrões congraçados, todos participavam das alegrias da festa.

No recinto espaçoso, onde se alinhava plantado ao chão ou sobre armaduras de aço, o maquinário inativo revigorar-se-ia ao sopro vital dos vapores vindos das caldeiras calorentas. Lá fora, as locomotivas vestidas de pintura nova aguardavam a hora certa de estridular, todas ao mesmo tempo, em silvos graves e agudos qual acordes de uma sinfonia improvisada em que o apito mais grave, direto das caldeiras, era o contrabaixo dessa orquestra fantástica.

“A botada” tinha data e hora certas. Dias antes, a fumaça escassa no topo do bueiro denotava a conclusão dos reparos e a necessária experimentação do complexo instrumental trabalhado no processamento do açúcar. De véspera, as providencias extrapolavam os recintos da Usina e chegavam aos canaviais: carreiros e chamadores com seus carros de boi, cavalos e burros aparelhados com seus condutores, cortadores de cana e amarradeiras de olho (2). Centenas de homens e mulheres demandavam ao campo. Uma paisagem humana nova de movimento e de trabalho se instalava nos canaviais. Ali, uma mistura de raças, de vozes e de rítimos encorajava cada qual no cumprimento de suas tarefas antes que o sol descambasse. A noite nos canaviais é sempre noite de guarás e das raposas, até que o dia amanheça.

Toneladas de cana ocupavam os espaços vazios, enquanto as locomotivas, arrastando vagões abastecidos de cana nos pontos mais distantes, aguardavam a hora da descarga.

Palmas de pindoba enfeitavam dentro e fora, de alto a baixo as paredes e os espaços livres.

A Missa, embora celebrada com simplicidade litúrgica, era ato incorporado à festa.

Cânticos sacros sobressaiam em meio da falação que as esperanças provocavam.

Ao final, enquanto o Sacerdote aspergia água benta, como bênção a pessoas se máquinas, todas as vozes entoavam: “dai-nos a bênção ó Virgem Mãe, penhor seguro do sumo Bem”.

A máquina de moer, a primeira a ser acionada, tinha o privilégio de movimentar-se ao toque das mãos do “doutor” à hora exata da ‘botada’, no mesmo impulso, o “caminho sem fim”, braços e mãos de gigante, iniciaria a caminhada para levar à boca escancarada das moendas os canaviais abatidos.

Realizara-se a “botada”. Agora, a moagem continuaria na rotina das safras anteriores: cana, caldo, mel, açúcar.

À noite. O menino, olhos e ouvidos cansados, resistiu ao sono. Esperou as luzes acenderem.

Contemplou centenas de pontos cintilantes na escuridão da noite que permeia a sua casa e a área iluminada. Pareceu-lhe um pedaço de céu estrelado pairando perto do chão. E adormeceu, ali na varanda, vendo tudo claro, sabendo por que seu pai todos os dias o dia todo, de botas, chapéu de abas largas, paletó e calça brim cáqui, cavalgando sempre, saia de casa cedo a caminho dos canaviais.

– Seu Arlindo, seu Arlindo, você nunca aprende a selar um burro?! Montava e saia cedo a caminho dos canaviais…

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